quando o amor plantou um buraco

por Carol Stampone

Ele era o único que tinha culhões para quebrar as regras. O único que tinha coragem de desrespeitar as normas_ era o que ela pensava. 
Quando finalmente atirou tal verdade encima dele, enquanto ainda estavam debaixo das cobertas, a alimetarem-se do calor um do outro, ele ficou calado. Foi tomado por um frio, um medo de que ela partisse, o deixasse para sempre. 
_ Foi então pela minha coragem que você se apaixonou? _ ele perguntou, rezando baixinho para santos nos quais não acreditava, para que ajudassem-na a fazer a caridade de contar-lhe uma mentira. Uma mentira miudinha que fosse, suficiente apenas para manter as esperanças dele vivas por mais uma estação.
Mas ninguém veio salvá-lo. Ela abriu a boca e derramou sobre eles o que ele tanto temia. Ela tinha se apaixonado por uma ilusão. O que ela chamava de 'coragem', de 'ter culhões' era só uma vida mergulhada numa consistente falta de sentido, era um vazio de existir, que não o empurrava nem pra frente, nem pra trás, nem para um lado, nem para o outro. Todo lugar era igualmente possível e desinteressante. A qualquer hora, em qualquer tempo, debaixo de chuva, sol ou canivetes, ele podia simplesmente ir. Ele não tinha medo de pular da montanha, nem de atravessar a rua quando o sinal estava vermelho, não tinha pudores em dizer não, não tinha necessidade de esconder-se dentro de uma prisão domiciliar, não tinha urgências, nem pressa. Tudo a sua volta era tédio. E ele simplesmente existia, gastava os dias meio ao absurdo, sem expectativas ou ressentimentos, sem medo da morte ou amor a vida.  
Mas agora, depois dela, tudo tinha mudado. Sem esperar ou entender ele foi ocupado por uma amor que não conhecia, que nem imaginava que podia existir. Um amor espaçoso, exigente, com mania de posse. Um amor barulhento e cruel. Um amor que o fazia menor e mais pesado. Um amor que enchia o mundo de cheiro, cores, manias, molduras e amanhãs. Um amor que arrancou dele a independência  e a autonomia que só sabem habitar aqueles que não se importam com nada e gastam os dias a ser parte do tédio de existir.
Depois daquele amor ele passou a ter medo da morte. Deixou de atirar-se de montanhas, por medo de quebrar uma perna e ter que ficar uma semana ou duas sem poder amá-la. Diminui o passo, para caminhar ao lado de sua amada. Passou a respeitar as regras, para caber no mundo dela. Deixou de tediar, para amar, Tudo o que ele sabia e podia fazer era amá-la.  Passou a existir para isso, apesar de saber, no fundo de seus ossos, que aquela história de amor tinha os dias contados. 
Ele sabia que quando ela se desse conta do engano ia partir, a procura de outro ser desligado do mundo, outro pobre coitado, como ele tinha sido um dia. Um ser humano desprendido das regras e de todas as certezas absurdas desse mundo. Ela ia partir e ele ia ficar sozinho. A vida dele ia ficar vazia outra vez. Mas, dessa vez de outro jeito. Um vazio que não era primário, nem primeiro. Um vazio que era mais como um buraco, uma marca do que um dia dia existiu para depois murchar e morrer. 

Comments

Popular posts from this blog

Os amantes do café Flore: Beauvoir e Sartre

Conversando com “Vozes Mulheres” de Conceição Evaristo

Strangers de Taichi Yamada